domingo, 30 de março de 2014

Veja bem

A recente pesquisa sobre o que os brasileiros pensam acerca do estupro pegou todo mundo de surpresa. Nem tanto pelo fato de demonstrar que parte da população coloca nas mulheres a responsabilidade pelas ocorrências de estupro, mas pelos índices ali exibidos. 
Todo mundo achou alarmante e, como toda pesquisa, esta é passível de contestação dos métodos, da abrangência, e de outras coisas que poderiam ter influenciado o resultado. 
Mas só a Veja, e sempre a Veja, poderia produzir artigos justificando os entrevistados e dizendo que a "vitimização" da mulher nos casos de estupro é uma manobra eleitoral do PT. 

A revista desacredita as duas perguntas da pesquisa, cujos resultados mais assustaram e dizem que elas foram mal formuladas.  Vocês podem ler o artigo que, aparentemente faz sentido (e até chegar à mesma conclusão de que tudo é mesmo uma conspiração petista) aqui: http://veja.abril.com.br/blog/felipe-moura-brasil/2014/03/29/estupro-machismo-culpa-levante-a-plaquinha-eu-nao-mereco-ser-enganada-pelo-ipea-e-mais-maioria-defende-pena-de-morte-ou-prisao-perpetua-a-estupradores/

Eu prefiro analisar as coisas da minha própria cabeça, sem o palavreado pomposo e cheio de referências, pra ver se faz mesmo sentido. Em geral, a melhor forma de entender as coisas é retirando os acessórios, enfeites e penduricalhos e olhando não o que querem que eu veja, mas o que realmente é. 

“Mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas.” - 65% dos entrevistados concordaram, total ou parcialmente.

O articulista diz, com propriedade, que a pesquisa não fala em "estuprada", mas em "atacada" e que as pessoas que responderam à pesquisa podem ter interpretado essa palavra de várias maneiras.
Verdade. Ocorre que, qualquer que seja a maneira da interpretação o resultado geral é o mesmo: 65% das pessoas entrevistadas acham que uma mulher que usa roupa que mostra o corpo MERECE (e essa é a palavra chave) uma reação (em geral masculina) de ataque. Se esse ataque vai ser um assobio, uma ofensa, uma cantada grosseira, um tapa na cara, uma encoxada no ônibus ou uma relação sexual forçada, isso depende da vontade e disposição do outro. Mas o fato é que a mulher merece alguma coisa por se vestir assim.  
Então, pouco importa como tenham interpretado a palavra "atacada", o pensamento é, sim, de dizer que a mulher que veste roupa que mostra o corpo merece alguma reação por parte dos outros. Essa reação fica a gosto do freguês.
Dificilmente, numa pesquisa sobre estupro, alguém interpretaria "atacada" como "elogio, galanteio, indiferença, paquera".

“Se as mulheres soubessem se comportar haveria menos estupros.” - 58,5%, idem.


Nessa o autor diz que não se está culpando as mulheres, mas apenas fazendo a relação de causa e efeito, apontando ser "perfeitamente compreensível o raciocínio de que se elas não usassem roupas tão provocantes atrairiam menos a atenção dos estupradores". Ora, é justamente no fato de esse pensamento existir, e ser compreensível por articulistas de revistas, que reside o problema. 

Qual comportamento da freira Meena resultou em seu estupro? (http://www.doutrinacatolica.com/modules/news/article.php?storyid=6886)

Qual comportamento dessa criança de 1 ano e 8 meses resultou no seu estupro?
(http://g1.globo.com/ap/amapa/noticia/2014/03/fui-possuido-diz-padrasto-suspeito-de-estuprar-crianca-de-1-ano-no-ap.html)

Qual comportamento dessa deficiente resultou em seu estupro?
(http://g1.globo.com/minas-gerais/noticia/2014/03/jovem-com-deficiencia-morre-sob-suspeita-de-estupro-em-bh-diz-pm.html)

Qual comportamento, por fim, de uma mulher de 51 anos, desacordada num leito de hospital, que resultou em seu estupro? (http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2014/03/11/familia-acusa-enfermeiro-de-estuprar-idosa-internada-em-hospital-de-bh.htm)


Por mais que a Veja tente usar de retóricas e acusar a interpretação, não é difícil perceber que as pessoas transferem, sim, a responsabilidade para a mulher. Basta olhar uma mulher de roupa curta que as pessoas comentam: "depois que é estuprada, fica lamentando". 
Ora, é esconder o machismo dizer que só está se falando dos riscos. O risco de ser atropelado ao atravessar uma rua é maior do que se ficar na calçada. Mas ninguém sugere que pedestres deixem de atravessar ruas para reduzir o risco a quase zero. Assim como ninguém sugere que todas as pessoas parem de carregar dinheiro para reduzir os riscos de assalto. Dizer que o risco de estupro aumenta porque a mulher usa saia curta é machismo, crueldade e mentira. Se fosse assim, com tantas mulheres de saias curtas, apenas elas seriam estupradas. O risco do estupro aumenta pela falta de segurança pública, pela falta de ação da polícia e, posteriormente, da justiça, em relação ao estuprador. O estuprador possui várias razões para o que faz: 
Há os que se vingam da mulher, ou de alguém ligado a ela.
Há os que acham que mulheres são propriedades e devem servi-lo quando ele se interessa por ela. 
Há os delirantes que acham que as mulheres o provocam, e para estes, basta um pescoço ou os olhos à mostra. 

Em nenhum dos casos, a roupa da mulher vai fazer diferença. 

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