sábado, 24 de março de 2018

Teu passado é tão forte, pode até machucar

Em 2017, se falou muito sobre pedofilia.

Infelizmente, não foi uma discussão sobre como tratar os pedófilos evitando que cometam crimes de abuso contra crianças.

Também não estavam preocupados com as meninas abusadas sexualmente por pais, parentes ou por redes organizadas de exploração de prostituição comandadas por políticos no Amazonas.

Tampouco se interessaram pelos meninos entregues aos padres pelas suas próprias famílias e que são abusados por uma figura de autoridade que eles sequer podem denunciar em casa.

Infelizmente, o assunto não girou sobre a indústria que gira em torno da produção e comércio de imagens pornográficas envolvendo crianças.

Não, a gritaria geral foi contra quadros. Quadros que foram acusados de pedofilia porque:
a) se vistos por crianças poderiam gerar nelas uma sexualidade precoce e
b) retratavam crianças e se vistos por pedófilos gerariam neles um desejo sexual.

Eu também resolvi falar sobre pedofilia. Não sobre o crime de estupro de vulnerável ou sobre o abuso sexual infantil. Mas sobre pedofilia e como o desejo de se relacionar com alguém de pouca idade, inexperiente sexual e emocionalmente, acaba se revelando na nossa cultura, particularmente na música.

Sim, eu sei que vocês também se incomodam com as músicas que falam das "novinhas", afinal quem são as "novinhas"? Pois bem, elas são as "meninas" e "garotas" de outrora. Ou ninguém nunca reparou essa insistência em chamar as mulheres de "garotas" nas músicas. Menina não é sinônimo de mulher. E as músicas antigas que amamos fazem muito essa referência.

Nos parece normal que um homem que tinha mais de 30 anos quando Helô Pinheiro nasceu, faça uma música ao vê-la de biquini na praia, descrevendo a beleza de seu corpo. Ok, ela já tinha 17 anos e ele não fala em fazer sexo com ela. Mas eu acho estranho. Mas temos outros exemplos nem tão aceitáveis, mas que nós nem nos importamos.

Terminada a refeição, a sala ficou vazia. A mãe foi para o andar de cima e, num passado escondido pela sala, a menininha esperava. O professor de piano chega e começa lição nova. E a menina, bonitinha, berrava alto a ponto de toda a casa ouvir: "Ai, ai, ai, tira a mão daí". E o professor retrucava: vamos acabar essa lição no sofá.

Sim, essa cena de pedofilia entre o professor e uma menina é uma música infantil, do mesmo Vinícius de Moraes, reproduzida alegremente pelas Frenéticas em um especial da Rede Globo para riso da família tradicional brasileira. 

Agora imagine que sua filha, neta ou sobrinha ouve um homem dizer: "deixa essa boneca e vem brincar de amor. Menina linda, eu te adoro. Menina pura como a flor".
Mas achamos romântica essa música e lembramos como tempos em que se faziam boas canções, não "essas baixarias que tem hoje". Se alguém quiser me convencer que a menina que tem mais de 18 anos ainda brinca de boneca, então estamos diante de estupro de vulnerável.

Compilando pedofilia com o machismo, aquele que diz que o homem é indefeso diante da atração da mulher, as músicas jogam nas meninas a culpa de seduzir o adulto.

"Nesse corpo meigo e tão pequeno
Há uma espécie de veneno
Bem gostoso de provar"

Não acredito que  Reginaldo Rossi acreditasse que as mulheres com menos de 1,60m fossem particularmente atraentes, ainda mais sabendo o que o conquistou foi o "jeito de menina e o gosto de mulher".

Mesmo quando o eu lírico é uma mulher, a música composta por um homem põe essas preciosidades em sua fala:

"Inda sou menina
Mas já sei amar
Aprendi mais cedo
Só pra te ensinar"

Ou seja, a menina não é apenas sexualizada, ela ainda sabe mais do que o moreno filho da Bahia. Só pra lembrar que Sandoval, o rapaz que ensinou a menina a beber no bar Varandá, era o dono do Tabaris, casa de show onde grandes artistas se apresentavam, e que tinha show de strip-tease e era frequentado por prostitutas também. É nesse local que se encontra a menina que, de tão pouca idade, precisa afirmas "já sei amar".

Benito di Paula, e depois Netinho, se apaixonaram por uma menina que eles carregaram no colo e cantaram pra dormir. Além da pedofilia, a menos que Benito di Paula e Netinho tenham trabalhado como babá, a insinuação do incesto é clara. Se já é difícil achar um homem que coloque o próprio filho pra dormir, quem dirá um que fique ninando o filho alheio? E onde estariam os pais dessa menina pra que outro ficasse colocando ela pra dormir? Tudo bem que, agora, a menina já "virou mulher". Esperemos que isso signifique ser maior de idade e não apenas a primeira menstruação, que era como se dizia antigamente (ficou mocinha, virou mulher).

Vou terminar com mais um de abuso. Uma menina, precisando trabalhar, atende a um anúncio. O patrão pede que ela fica até depois das 18h e faz sexo com ela, tirando-lhe a virgindade. A ingênua se apaixonou, mas o patrão lhe pagou pelo "serviço", tratando-a como prostituta. Essa música foi um sucesso na época, cantada de forma romântica.

 

Há outros exemplos menos claros e, como sei que muitos se recusarão a ver a indicação desses, nem vou citar.

Não estou dizendo que esses cantores são pedófilos, que incentivam ou apoiam a pedofilia. Estou dizendo que eles deixam passar  em suas canções que é normal o desejo pela criança, pela pessoa ingênua e pura e a sociedade aceita isso sem nem perceber. E nem estou falando de músicas altamente impróprias sendo cantadas por crianças, quer sejam profissionais, quer sejam participantes de programas de TV.

E, sim, estou de volta em 2018.







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