sábado, 10 de março de 2012

Pra quem não conhece e pra quem ama.

Você já viu Jussara Silveira?

Ricardo Freire
(Jornal da Tarde - 25/10/2000)

Eu sou do tempo em que Chico Buarque tocava na FM. E não era em rádios tipo a Eldorado, não: era em qualquer FM. Lembro perfeitamente que Geni e o Zepelim ficou semanas a fio em primeiro lugar na parada - pasmem - da Rádio Cidade (em Porto Alegre, pelo menos). Tudo bem que estava todo mundo besta de a censura (a temível Dona Solange) ter liberado o verso joga bosta na Geni. Era mesmo inacreditável poder ligar o rádio e cantar junto joga bosta na Geni! joga bosta na Geni! - parecia o primeiro sinal de que um dia os milicos iam realmente cair. Palavrões à parte, o fato é que, naquele tempo, MPB e FM conviviam no mesmo alfabeto. Naquele verão de 79, centenas de milhares de argentinos aproveitaram o câmbio vantajoso (é a chamada Lei de Passarella: argentino gosta de levar vantagem em tudo) e invadiram o Brasil. Cada um deles voltou para casa com uma TV colorida 14 polegadas no colo e um disco da Ópera do Malandro debaixo do braço. Ruêga buêsta en la Reni! Mas a canção da Ópera do Malandro que fez mais sucesso não estava naquele LP: era O Meu Amor, na versão de Maria Bethânia e Alcione, que tinha saído no disco Álibi, de Bethânia, em 78. Tratava-se de uma música com carga erótica mais intensa que O Último Tango em Paris (que, se não me engano, tinha sido liberado na mesma época). Chico Buarque nunca levou tão a fundo sua poesia com voz de mulher. A música dizia coisas como roçar a nuca com a barba malfeita, pousar coxas sobre coxas, rir do umbigo e cravar os dentes - uma coisa louca, de não se poder ouvir na frente dos próprios pais. Uma geração mais tarde, cá estava eu lendo meu jornal quando vi que Bethânia ia se apresentar em São Paulo, com convidadas; e que uma das convidadas era Alcione; e que uma das músicas que elas cantariam em dueto seria exatamente O Meu Amor. Uêba! Recordar é viver! E então, enquanto todo mundo ia ao Free Jazz, lá fui eu para o Credicard Hall. Eu já escrevi aqui uma coluna sobre Alcione (na verdade, era mais sobre o Teatro Rival, no Rio), mas acho que nunca falei de Bethânia. Vou tentar resumir o que eu penso em poucas palavras. Para mim, Bethânia não é uma cantora: Bethânia é uma entidade. Bethânia é o quinto elemento. Bethânia é o 13º signo. Bethânia é uma minoria sexual em si. Bethânia é tudo. E minha caixa postal recusará automaticamente todos os e-mails em contrário. O show demorou para esquentar (talvez porque aquelas que costumam gritar Poderosa!, Vitaminada!, Hierárquica! deviam estar todas no Free Jazz). Quando Bethânia e Alcione cantaram O Meu Amor eu ainda estava frio, tentando imaginar uma maneira de ignorar o eco joão-gilbertiano do Credicard Hall (sim, ele existe, não é frescura) e tecendo comparações sempre favoráveis ao Palace (sim, eu gosto mais de Congonhas do que de Cumbica). Veja bem: não é que não estivesse gostando - eu só não estava adorando. Até que de repente entraram as outras três cantoras convidadas. Uma delas, Jussara Silveira. Você já ouviu Jussara Silveira? Eu já. Tenho os dois discos dela. O primeiro, independente, gravado em 96 (depois reeditado pela Dubas, de Ronaldo Bastos), tem um repertório muito bem-escolhido e bem-arranjado (baianos novos, um Luiz Melodia clássico, um Chico e um Caetano pouco batidos). O segundo, já sob os cuidados de Ronaldo Bastos, é uma antologia de canções de Dorival Caymmi que rivaliza com o impecável Gal Canta Caymmi, de 75. Eu já tinha ouvido Jussara Silveira. Mas eu nunca tinha visto Jussara Silveira. E isso faz toda a diferença do mundo. Onde foi parar aquela timidez que a gente ouve no disco? Ao vivo, ela desaparece atrás de um nariz semita capaz de promover a paz entre judeus e palestinos. E de um decote que muitas modelos fariam fila na Santé para poder usar. Sua presença cênica amplifica, e como, o impacto de sua voz - cujo charme vem de um levíssimo esganiçado que lhe confere uma beleza estranha e singular. É como se fosse Gal, mas sem a perfeição irritante da voz de Gal. É como se fosse Bethânia, mas com uma voz mais bonita que a de Bethânia. Enquanto as outras, até mesmo Alcione, desapareciam perto da anfitriã, Jussara Silveira se mostrava à vontade, como se Bethânia fosse sua convidada. Mas daí ela cantou três musiquinhas e tornou à coxia, voltando ao palco só como backing vocal. Na volta, corri para a Internet, e descobri que a moça canta há 15 anos, e já até andou fazendo shows em São Paulo, nos idos de 97 e 98. Meu Deus, em que planeta eu estava? Volta, Jussara! Que três musiquinhas não são nada...

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