segunda-feira, 25 de setembro de 2006

Esse ano, quero paz no meu coração!

Mais um ano. Mais um palmo a separar-me dos outros, já que a vida
não passa de um progressivo distanciamento de tudo e de todos, que
a morte remata.
Miguel Torga

Dizem que com a idade a gente adquire certos direitos, como o de falar o que pensa. Pois a partir de agora, esse blog, com o respaldo de 36 anos de minha existência, vai se dar ao direito de dizer certas coisas, ainda que não do agrado de todos.

Uma das coisas que venho percebendo com a idade é que não tenho mais paciência pros problemas alheios (se é que algum dia a tive). É egoísta, é cruel, mas também é verdade.

Dos problemas de estranhos, tenho resolvido com facilidade: "Não, não tenho dinheiro pra 'inteirar' sua passagem"; "Sinto muito que a repartição que a senhora precisa só exista a 260 km, talvez se a senhora pressionasse o prefeito, ou votesse melhor pra deputado federal, algum deles criasse uma aqui"; "Se o senhor não tem troco, ou o senhor sai pra trocar, ou a corrida fica de graça".

Mas com relação aos amigos, faz parte do relacionamento a troca de problemas. É um ajudando o outro.

Eu só conheço uma pessoa no mundo que não leva problemas pros amigos: Alexandre. Nunca ouvi alguém dizer que Alexandre tenha alugado alguém pra chorar seus problemas. Certamente, ele os tem. E sempre ouve os amigos. E até compartilha alguns dos problemas dele, mas sempre de uma forma tão leve e tão consciente de que os precisa enfrentar, que a gente sente como se ele estivesse contando o que aconteceu no capítulo de ontem da novela.

Vai ver que Alexandre costuma se confidenciar com alguém fora do círculo de amizade. Nunca ouvimos dizer que ele tenha analista, ou padre confessor, mas vai ver...
Não é à toa que, quando Alec fica doente, ou precisa de alguma ajuda, todos se mobilizam pra socorrê-lo. Ele é tão solícito, sempre ouve os problemas de todo mundo, e nunca passa seus fardos pros outros, que a gente precisa dividir alguma coisa.

Não que todos os meus outros amigos me tragam seus problemas. Graças a deus, não! Mas, certamente, eles compartilham com alguém. Porque todo mundo faz isso. É um dos requisitos da amizade.

Então como eu posso dizer que estou cansado disso se eu mesmo levo problemas pros outros?

O que ocorre é que eu estou cansado daqueles problemas que se instalaram. Aqueles que passaram a fazer parte da vida das pessoas e não saem mais. Até porque, ao que parece, a pessoa não quer. Nesse rol, conto, no momento, com uma meia dúzia desses trazidos por outras pessoas. Problemas pros quais eu já não tenho mais saco pra ouvir, mas a pessoa insiste em retomar.

Essa rotina se desenvolve da seguinte forma:

1ª fase: a pessoa conta um problema. Um, duas, três vezes. Você, como bom amigo, ouve e a pedido da pessoa, até dá conselho. Dar conselhos é uma coisa complicada: se a pessoa faz o que você aconselhou, você se sente responsável pelo resultado, mas se a pessoa não dá a mínima, e é o que acontece na maioria das vezes, você passa pra...

2ª fase: a pessoa continua contando o problema e você só ouve. Faz um murmúrio aqui e ali, fraco o suficiente pra não insinuar que está concordando com nada, mas forte pra que a pessoa entenda que você está ouvindo. Esse recurso do murmúrio é dificílimo quando a conversa se dá por MSN. Como o problema continua, até porque a pessoa não faz nada a não ser relatá-lo, segue-se pra fase seguinte.

3ª fase: a pessoa não faz nada do que você, os pais, a(o) parceira(o), o analista, a Revista Nova, a Enciclopédia Britânica, o Google e o bom senso recomendam. Mas continua contando o problema, e sugerindo uma solução, que todos acham errada. Ela não se contenta mais com seus murmúrios e quer te ouvir. Ela refuta aqueles conselhos da 1ª fase e insiste pra que você dê um conselho que seja exatamente igual à solução que ela propõe. Você, que não quer se tornar cúmplice do fracasso, ou rompe a amizade ou se muda pra Paris a trabalho.

Infelizmente, há pouca chance de uma mudança continental na Justiça do Trabalho, e eu não falo francês, mas também não quero romper com meus amigos.

Eu só não quero mais saber de seus problemas de estimação. Eles já estão aí mesmo, tão bem alimentados, documentados, fotografados, eu já ouvi tudo que podia a respeito deles. Está na hora de compartilhá-los com toda uma nova geração de amigos. Ou, pelo menos, me trazer problemas inéditos.

Afinal problemas circunstanciais, dificuldades ocasionais, contratempo emocionais, ainda são bem-vindos... pelo menos até eu completar 56 anos.

De todos os inconvenientes da idade, a experiência não é o menos importante.
George Bernanos.

3 comentários:

  1. querido amigo de estimação:
    atualmente o problema que mais se repete na minha vida - e do qual eu falei domingo de manhã com o Mel lá em casa - é que você faz muita falta na minha vida diária!
    bjs,
    Sil

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  2. Bom, acho que agora consegui. Seus textos são muito bem escritos e cheios de significados. Mas amigo não é só para problema. "Amiga é aquela pessoa em cuja presença não é preciso falar nada. Basta a alegria de estarem juntos" Rubem Alves.

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  3. Vou dizer o quê, rapaz!?

    Só dá mesmo pra rir, reler... contemplar! E pedir a minha irmã que leia!

    Sou seu fã (como autor, porque como pessoa prefiro - evidentemente - a posição de AMIGO)!

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